A Gramática de Libras ainda é, para muita gente, um território desconhecido. Muitas pessoas acreditam que Libras é apenas um conjunto de gestos soltos que substituem palavras do português, mas isso está bem longe da realidade. Assim como qualquer língua natural, Libras possui regras próprias de gramática, estrutura, concordância, ordem frasal, uso de espaço e expressões não manuais.
Entender a Gramática de Libras é o que separa alguém que só “decora sinais” de alguém que realmente se comunica com clareza, fluência e respeito à comunidade surda. Sem domínio da gramática, é comum produzir frases com “sotaque forte de português”, que soam estranhas, confusas ou até mudam de significado.
Neste artigo, você vai entender:
- O que é, de fato, a Gramática de Libras
- Quais são seus elementos fundamentais
- Dicas práticas para dominar essa gramática no dia a dia
- Erros comuns que atrapalham a comunicação
- Como estudar forma estratégica para evoluir mais rápido
Vamos por partes.
O que é a Gramática de Libras?
A Gramática de Libras é o conjunto de regras que organiza como os sinais se combinam para formar palavras, frases e discursos com sentido. Ela abrange:
- Como os sinais são formados
- Como se organizam em frases
- Como se marcam tempo, pessoa, negação, perguntas, intensidade e outros aspectos
- Como o espaço visual é utilizado de forma linguística
Pontos importantes:
- Libras não é “português sinalizado”
Libras não copia a estrutura do português. É uma língua independente, com gramática própria. Isso significa que a ordem das palavras, a forma de fazer perguntas, os tempos verbais e a concordância são diferentes do português. - Libras é visual-espacial
Enquanto o português é uma língua oral-auditiva, Libras se organiza no espaço e depende da visão. O uso do espaço, do corpo, das expressões faciais e do movimento faz parte da gramática, não é apenas “teatro” ou exagero. - Libras tem todos os níveis de estrutura de uma língua
Há unidades mínimas (parâmetros), combinações de sinais, regras de sintaxe, mecanismos de coesão e coerência. Ou seja: é uma língua completa e complexa.
Elementos fundamentais da Gramática de Libras
Parâmetros da sinalização
Cada sinal em Libras não é um gesto aleatório. Ele é formado por um conjunto de características, chamadas de parâmetros. Alterar um parâmetro pode mudar totalmente o significado do sinal.
Os principais parâmetros são:
- Configuração de mão
É o formato da mão ao produzir o sinal. Exemplo: mão em forma de “A”, “B”, “S”, dedos juntos, dedos separados, etc. Dois sinais podem ter o mesmo movimento, mas, se a configuração de mão mudar, o sinal vira outro. - Ponto de articulação
É o local do corpo ou do espaço onde o sinal é realizado. Pode ser na testa, queixo, peito, ombro, lado do corpo, ou em um ponto no espaço à frente do corpo. Mudar o ponto de articulação também muda o sinal. - Movimento
É como a mão se desloca: para cima, para baixo, circular, repetido, único, em arco, em linha reta, rápido, lento. Pequenas diferenças de movimento também podem diferenciar significados. - Orientação da palma
É a direção para a qual a palma da mão aponta: para cima, para baixo, para o corpo, para frente, para o lado, etc. Uma mudança de orientação pode criar um novo sinal ou um erro que torna o sinal difícil de reconhecer.
5 Expressões não manuais
Incluem expressões faciais, movimento da cabeça, do tronco e da boca. Elas podem indicar negação, pergunta, intensidade, dúvida, surpresa, ironia e muito mais. Na Gramática de Libras, expressão facial faz parte do sinal, não é opcional.
Dominar os parâmetros é o primeiro passo para produzir sinais corretos e compreensíveis.
Estrutura frasal na Gramática de Libras
A ordem das informações em Libras pode ser diferente do português. Uma estrutura muito comum é:
- Tópico + Comentário
O foco principal da frase (o tópico) é apresentado primeiro; em seguida, vem o que se vai dizer sobre esse tópico (o comentário).
Exemplo em português:
“Hoje eu vou ao médico.”
Em Libras, algo como:
“HOJE MÉDICO IR-EU.”
Observe:
- “HOJE” e “MÉDICO” entram como elementos de contexto e tópico
- O verbo e o sujeito podem aparecer de forma diferente da estrutura padrão do português
Além disso, Libras utiliza muito:
- Apresentação de cenário antes da ação
- Marcação de tempo no início da frase
- Uso do espaço para marcar “quem faz o quê”
Não existe apenas uma ordem fixa; o que importa é respeitar os mecanismos de tópico, foco e referência, próprios da Gramática de Libras.
Expressões não manuais como parte da gramática
Na Gramática de Libras, as expressões não manuais têm função gramatical clara, principalmente em:
- Perguntas
Em perguntas do tipo “sim ou não”, é comum elevar as sobrancelhas, inclinar levemente o tronco e manter o olhar direcionado ao interlocutor.
Em perguntas abertas, do tipo “o quê?”, “quem?”, “onde?”, é comum franzir as sobrancelhas. - Negação
Além do sinal específico de “NÃO”, muitas vezes a negação é reforçada com movimento de cabeça, expressão facial de reprovação ou discordância. - Condicionais e ênfases
Expressões faciais marcam contraste, hipótese, condição, dúvida, susto, crítica e ironia. Ignorar essas expressões empobrece a comunicação e pode causar mal-entendidos.
Ignorar as expressões não manuais é como falar português sem usar entonação, sem ponto de interrogação, sem vírgulas. O resultado é uma fala “reta”, cansativa e, muitas vezes, confusa.
Espaço de sinalização e referenciação
O espaço à frente do corpo do sinalizante é organizado linguisticamente. Alguns pontos importantes:
- Estabelecimento de referentes
Ao falar de uma pessoa ou objeto, muitas vezes atribui-se um ponto no espaço para representá-la. Depois, basta apontar ou direcionar sinais para esse ponto para retomar o referente. - Concordância verbal e pronominal
Muitos verbos em Libras se movimentam de um ponto (quem age) para outro (quem recebe a ação). Isso marca, na gramática, sujeito e objeto de modo visual. - Organização de cenas
Para narrativas, o espaço pode ser usado para mostrar onde cada personagem está, de que lado vêm os objetos, por onde alguém entra ou sai, etc.
Usar o espaço de sinalização de forma coerente é parte fundamental da Gramática de Libras e dá fluidez e clareza à comunicação.
Dicas essenciais para dominar a Gramática de Libras
A seguir, algumas orientações práticas para quem quer ir além da memorização de sinais e realmente dominar a Gramática de Libras.
1. Foque em frases completas, não em sinais soltos
Estudar sinal por sinal é útil no começo, mas isso não basta. Desde cedo, tente montar:
- Frases simples
- Pequenos diálogos
- Perguntas e respostas
Isso força você a aplicar ordem frasal, concordância, uso do espaço e expressões faciais, ou seja, a gramática em ação.
2. Observe com atenção as expressões não manuais
Quando assistir a pessoas surdas conversando ou a intérpretes experientes:
- Repare nas sobrancelhas
- Note o movimento do tronco e da cabeça
- Perceba como o rosto muda em perguntas, negações, surpresa, dúvida
Depois, tente reproduzir conscientemente essas expressões ao praticar.
3. Treine topicalização
A topicalização, muito comum em Libras, acontece quando você traz o “assunto principal” da frase logo no início, muitas vezes com expressão facial específica. Exemplos de tópicos:
- Tempo
- Lugar
- Pessoa sobre quem se fala
Prática: escolha um tema, por exemplo “AMANHÔ ou “TRABALHO”, e monte várias frases começando por esse tópico.
4. Use o espaço de forma consistente
Evite apontar ao acaso. Quando começar a falar sobre uma pessoa:
- Estabeleça um ponto no espaço para representá-la
- Use sempre o mesmo ponto ao longo da conversa
Isso deixa a narrativa organizada e é uma exigência da Gramática de Libras para manter a referência clara.
5. Atenção à concordância verbal
Em muitos verbos, a direção do movimento marca quem faz e quem recebe a ação. Por exemplo, um verbo que se movimenta:
- Do seu corpo para um ponto no espaço: “eu faço algo para ele”
- De um ponto no espaço para você: “ele faz algo para mim”
Treinar essa concordância visual ajuda a construir frases mais naturais e gramaticalmente corretas.
6. Evite traduzir literalmente do português
Um dos maiores obstáculos ao domínio da Gramática de Libras é pensar em português e tentar “colocar sinais” na mesma ordem da frase falada ou escrita.
- Estude estruturas típicas de Libras
- Compare como surdos nativos se expressam em situações semelhantes
- Aceite que muitas vezes a frase “bonita” em Libras é bem diferente da frase em português
Quanto mais você se desprende da estrutura do português, mais natural fica seu uso da Libras.
7. Reconheça variações regionais, mas mantenha a base gramatical
Libras tem variações de sinais entre regiões, cidades e comunidades. Porém:
- A Gramática de Libras é o esqueleto comum
- Mesmo com sinais diferentes, a organização de frases, o uso do espaço, a concordância e as expressões não manuais seguem princípios gerais
Aprender sinais de outra região é bom, mas não confunda isso com “mudar a gramática”.
8. Pratique com pessoas surdas sempre que possível
Nada substitui a interação real com usuários nativos de Libras. Ao conversar com pessoas surdas:
- Peça que corrijam você quando algo soar “português demais”
- Observe como elas reestruturam suas frases
- Veja como usam o espaço e as expressões não manuais sem esforço consciente
Essa é uma das formas mais eficientes de internalizar a Gramática de Libras.
9. Grave e assista aos seus próprios vídeos
Autocorreção é poderosa. Ao se ver sinalizando:
- Note se há expressões faciais adequadas às frases
- Veja se está usando o espaço de forma coerente
- Observe se as frases parecem “lineares demais”, como português sinalizado
Anote seus erros recorrentes e foque neles nas próximas práticas.
10. Use materiais e cursos que enfatizem gramática, não só vocabulário
Procure:
- Cursos que tenham módulos específicos de Gramática de Libras
- Aulas com surdos nativos, explicando como “soa” uma frase mais natural
- Vídeos que analisam diálogos, não apenas dicionários de sinais
Isso acelera a transição de um nível básico para um uso realmente comunicativo da língua.
Erros comuns na Gramática de Libras
Ao aprender Libras, alguns erros aparecem com frequência e podem atrapalhar muito a compreensão:
- Sinalizar palavra por palavra do português
Resultado: frases artificiais, difíceis de entender e com “sotaque pesado”. - Ignorar expressões faciais
Sem marcação de perguntas, negações e intensidades, o interlocutor precisa adivinhar sua intenção. - Não usar o espaço para marcar referências
Falar de várias pessoas sem fixar pontos no espaço gera confusão: “quem fez o quê com quem?” - Não marcar tempo e contexto logo no início
Isso atrapalha a organização narrativa típica de Libras. - Misturar variações sem critério
Usar diferentes sinais para o mesmo conceito, sem necessidade, pode prejudicar a clareza e criar ruído.
Identificar esses erros em si mesmo é o primeiro passo para corrigi-los de forma consciente.
Estratégias de estudo da Gramática de Libras
Para quem está começando
- Construa uma base sólida de parâmetros dos sinais
- Aprenda frases simples completas desde o início
- Repita diálogos curtos, prestando atenção à expressão facial
- Use vídeos com surdos sinalizando devagar, pausando e imitando
Objetivo principal: acostumar o cérebro a ver Libras como língua completa, não como uma lista de sinais.
Para quem já conhece o básico
Se você já sabe um bom número de sinais e consegue se comunicar no dia a dia, mas sente que sua gramática ainda é “travada”:
- Assista a conversas entre surdos sem legenda, focando apenas na estrutura
- Tente recontar, em Libras, o que viu, copiando a ordem das informações
- Pratique tópicos: escolha um tema e fale algumas frases só sobre aquilo
- Faça exercícios específicos de perguntas, negações, condição, comparação e contraste
Objetivo principal: polir a forma, deixando suas frases mais naturais e próximas do padrão da comunidade surda.
A Gramática de Libras no contexto profissional
Dominar a Gramática de Libras não é apenas um diferencial estético; é uma necessidade ética e profissional em várias áreas:
- Intérpretes: precisam ter estrutura gramatical sólida para transmitir fielmente o conteúdo e o estilo do discurso.
- Professores bilíngues: ensinam conteúdo e, ao mesmo tempo, servem de modelo de língua para alunos surdos.
- Atendentes em serviços públicos, saúde e educação: um uso inadequado da gramática pode gerar falhas graves de comunicação.
Em qualquer contexto profissional que envolva Libras, usar a gramática corretamente demonstra respeito, competência e compromisso com a acessibilidade real, e não apenas simbólica.
Conclusão: como seguir evoluindo na Gramática de Libras
Dominar a Gramática de Libras é um processo contínuo, que envolve:
- Conhecimento teórico sobre estrutura, parâmetros e ordem frasal
- Muita exposição à Libras natural, usada por pessoas surdas
- Prática consciente, com foco em corrigir erros recorrentes
- Coragem para sair do “português sinalizado” e abraçar a lógica própria da Libras
Quanto mais você entender que a Gramática de Libras é o coração da língua, mais claras, fluidas e respeitosas serão suas interações com a comunidade surda.


